O bem de família

O BEM DE FAMÍLIA

Rafael Ricardo Gruber[1]

No sistema processual de execução brasileiro, em regra, as pessoas respondem por suas obrigações com todos os seus bens, presentes e futuros (art. 591, CPC). Contudo, a responsabilidade patrimonial é mitigada por princípios e normas que asseguram bens e patrimônio mínimo às pessoas. Dentre tais regras, o bem de família – legal e convencional – se destaca. O surgimento do instituto, segundo abalizada doutrina, foi no estado do Texas-EUA, no ano de 1843, no chamado Homestead Exception Act.

O bem de família pode ser conceituado como o bem ou conjunto de bens que a lei ou a vontade das partes confere especial proteção, não permitindo que se sujeitem à penhora e à expropriação para o pagamento de dívidas, salvo as exceções legais. Sua natureza jurídica é de impenhorabilidade no bem de família decorrente de lei, e de indisponibilidade – que é mais abrangente – no bem de família convencional, como distinguir-se-á adiante.

O fundamento para a proteção do bem de família, antes de sua previsão legal, ampara-se em princípios, em especial no da dignidade da pessoa humana. Luis Edson Fachin analisa a garantia do patrimônio mínimo existencial como direito fundamental das pessoas. Diz que o Estado não é obrigado a dar o bem, mas é obrigado a preservá-lo contra a execução forçada.

Além do fundamento em princípios – que de acordo com Luis Roberto Barroso desfrutam de status de norma jurídica -, o bem de família encontra proteção em diversos dispositivos legais. A lei 8.009/90 protege o imóvel de residência e os móveis que o guarnecem. Os artigos 1.711 e seguintes do Código Civil e o Decreto-lei 3.200/41 trazem normas aplicáveis à constituição do bem de família convencional. Os artigos 260 e seguintes da lei 6.015/73 regulam o procedimento no Registro de Imóveis para a inscrição do bem de família.

Harmonizando-se com o conceito, princípios e normas materiais, o Código de Processo Civil dispõe em seu art. 648 que os bens que a lei considere impenhoráveis ou inalienáveis não se sujeitam à execução.

O conceito de bem de família para proteção legal, segundo entendimento do STJ, abrange todas as formas de entidade familiar, protegendo também pessoas sozinhas, solteiras, separadas ou viúvas.

A proteção ao bem de família no ordenamento jurídico brasileiro prevê dois sistemas, duas espécies de proteção, que apesar de visarem ao mesmo objetivo fundamental, tem arcabouço jurídico distinto: o bem de família decorrente de lei, e o bem de família constituído por escritura pública.

O primeiro – com fundamento na lei 8.009/90 prescinde de qualquer formalidade para constituição, e a proteção decorre automaticamente da lei. Esta espécie protege apenas o imóvel residencial e objetos que o guarnecem. Entende-se que se o devedor tiver dois imóveis residenciais a proteção recai sobre o de menor valor. A proteção desta espécie de bem de família é afastada no caso dos sete incisos do art. 3º da lei 8.009/90, admitindo a penhora, por exemplo, para honrar dívidas trabalhistas dos domésticos da própria residência e para honrar obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

A segunda espécie – o bem de família voluntário – se fundamenta no art. 1.711 do Código Civil, Decreto-lei 3.200/41 e na Lei de Registros Públicos. Sua constituição é feita por escritura pública levada para registro no Registro de Imóveis competente. Neste caso, além do imóvel residencial e móveis que o guarnecem, é possível que o instituidor proteja também valores mobiliários para assegurar renda mínima à família beneficiada. Deve o instituidor, contudo, observar o limite de um terço do patrimônio líquido de seu patrimônio como limite dos bens a serem submetidos ao regramento protetivo. O título para instituição é a escritura pública ou o testamento.

Esta espécie de bem de família – voluntário – é uma exceção a duas regras de direito: que todo o patrimônio do devedor responde por suas dívidas, e que ninguém pode tornar impenhoráveis os próprios bens. Para Caio Mario, a natureza desta espécie de bem de família é a afetação de bens para um destino especial, que é garantir a moradia da família.

No Registro de Imóveis, após a qualificação do título, providencia-se a publicação da escritura em forma de edital. Se em 30 dias ninguém se opuser, o Oficial faz o registro do título no Livro 3 e também no Livro 2, na respectiva matrícula do imóvel. Se houver impugnação, a prenotação é cancelada, e o registro só se realizará por ordem do juiz (art. 264§1º da lei 6.015/73).

O bem sujeito à primeira espécie de proteção – da lei 8.009/90 – é tão somente impenhorável, e assim pode ser alienado. Já o bem de família constituído por registro no Registro de Imóveis, além de impenhorável, é também inalienável. Assim, somente esta espécie é que torna o bem indisponível.

As exceções à proteção no bem de família voluntário são apenas duas, conforme art. 1.715 do CC: as dívidas tributárias (sobre o próprio imóvel) e as despesas de condomínio. Portanto, a proteção desta espécie é mais abrangente que da outra.

Na jurisprudência tem-se verificado outra distinção: para a constituição do bem de família voluntário o Conselho Superior da Magistratura de São Paulo tem exigido que a família efetivamente habite o imóvel objeto da instituição pelo prazo mínimo estipulado no DL 3.200/41, qual seja, dois anos. Já quanto ao bem de família da lei 8.009/90 o STJ reconhece a proteção mesmo nos casos em que o imóvel esteja locado a terceiros, desde que seja o único da família e que sua renda seja utilizada para subsistência dos proprietários – locadores.

O documento constitutivo do bem de família voluntário – salvo se instituído por testamento – é necessariamente a escritura pública, não se aplicando a regra do art. 108 do Código Civil. Na escritura de constituição de bem de família, segundo Ademar Fioranelli, devem ser observados os seguintes requisitos, além dos comuns: declaração de que o instituidor possui outros bens e que o bem afetado como bem de família não excede 1/3 do patrimônio líquido; e declaração de que a família habita no imóvel há pelo menos dois anos.

O bem de família da lei 8.009/90, assim como não se constitui formalmente, não se extingue formalmente. Sua proteção é reconhecida no processo de execução, impedindo a penhora. Já o bem de família instituído no Registro de Imóveis fica também sujeito a averbação de cancelamento quando se extinguir o regime protetivo. A extinção pode se dar por pedido ao juiz (art. 1.719 CC e art. 1.721 parágrafo único do CC) e pela morte de ambos os cônjuges e maioridade dos filhos, salvo se algum sujeito a curatela. No primeiro caso o título no Registro de Imóveis é mandado judicial. No segundo, é requerimento pelo interessado, com prova da morte do casal e da maioridade sem interdição dos filhos, mediante certidões do registro civil.

Compete ao tabelião de notas, como profissional do direito no exercício de sua função pública, orientar e assessorar os usuários na formalização do instrumento da instituição do bem de família voluntário, com a devida segurança jurídica dinâmica. E ao Oficial de Registro de Imóveis compete a publicidade, após a qualificação jurídica do título, assegurando a segurança jurídica estática pela legitimação registral.

Conclui-se que ambas as espécies de bem de família visam à proteção do patrimônio mínimo às pessoas e famílias, harmonizando-se com o princípio da função social da propriedade e afinando-se com o fundamento da dignidade da pessoa humana.



[1] O autor é Tabelião Titular do 2º Tabelião de Notas e Protesto de Botucatu-SP. Pós-graduado em Direito Notarial e Registral e em Direito Civil.  Contato: rrgruber@gmail.com 

Últimos posts

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *