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CNJ e a Construção da Confiabilidade das Relações Sociais

Ricardo Campos, Docente na Goethe Universität

Frankfurt am Main (Alemanha) e Sócio no Opice Blum Advogados.

A importância de se refletir a partir da experiencia estrangeira fica muito clara quando consideramos os aspectos abertos a regulamentação pela Lei 14.382, sancionada em junho deste ano, e que estabelece novas regras para o registro de títulos em cartórios. A Lei institui um sistema eletrônico centralizado dos registros (chamado “Sistema Eletrônico dos Registros Públicos”, ou “Serp”), com vistas à suposta modernização dos procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos e de incorporações imobiliárias. Suposta, pois, embora o Governo Federal reclame para si as iniciativas de modernização do aparelho estatal brasileiro, não é de hoje que iniciativas de digitalização dos serviços notarias vêm sendo adotadas no país.

A nova legislação busca instituir uma apressada reestruturação do complexo regime que influencia e fundamenta inúmeros processos e atos jurídicos, introduzindo mudanças que dificilmente se adequam ao regime constitucionalmente definido para o exercício da atividade notarial e registral. Um exemplo é a possibilidade de serem viabilizados, diretamente pela entidade centralizadora do Serp, a expedição centralizada de certidões, a visualização eletrônica dos atos transcritos e o armazenamento de documentos eletrônicos para dar suporte aos atos registrais.

Com o objetivo de simplificar os atos registrais, a Lei caminha, em larga medida, para uma fragilização da fé pública e de sua função de estruturar a confiabilidade de relações sócio-econômicas. É o que acontece com a flexibilização do uso de assinaturas eletrônicas (que, segundo a lei, poderão ser realizadas com o uso de assinatura avançada, uma modalidade que não observa o padrão ICP-Brasil – mais seguro –  atualmente em vigor) e a realização de registros por uma das partes interessadas a partir de extratos eletrônicos (figura estranha ao rol taxativo de títulos admitidos a registro nos termos da Lei de Registros Públicos, que, por sinal, segue vigente) e não do título em si.

Em ambos os casos, há impactos não apenas sobre a segurança das operações em si, mas também sobre o regime de responsabilidade das próprias serventias, pois o serventuário não disporá de garantia suficientes para atestar a veracidade e autenticidade do título. No que se refere a esses dois pontos – primeiro, a admissibilidade do uso de assinatura avançada em vez de assinatura qualificada para acesso ou envio de informações aos registros públicos e, segundo, a introdução do sistema de extratos eletrônicos com dispensa da apresentação de cópia do título para efetivação do registro de bens móveis e de cessões de crédito – há bastante o que se aprender tanto com acertos quanto com erros de outros países. Vejamos.

No contexto de diversos atos e negócios jurídicos, nos quais a assinatura física no papel não é definida como regra, a opção pela assinatura com “papel e caneta” é uma escolha arbitrária cujo propósito é garantir a legitimidade da manifestação de vontade das partes. Felizmente, como é sabido, essa ideia tem sido superada e assinaturas eletrônicas têm sido cada vez mais utilizadas – processo que foi acelerado nos dois últimos anos, em razão da pandemia de Covid-19. Em vários países, contudo, determinados negócios jurídicos só são considerados juridicamente vinculantes se assinaturas qualificadas – aquelas que utilizam certificados digitais devidamente reconhecidos – forem aplicadas. Por vezes, o impedimento para que um negócio seja assinado eletronicamente baseia-se em exigências formais (legais) de autenticação. No direito alemão, e.g., essas exigências se aplicam a documentos como rescisões de contratos de trabalho, contratos de casamento, herança, life annuities, e transferência de bens imóveis.

Exigências parecidas são comuns a outros países, especialmente no que tange a contratos referentes a direitos reais. Na França, documentos relativos a bens imóveis devem ser assinados à mão, ou, nas hipóteses em que podem ser assinados eletronicamente, devem ser registrados no service de la publicité foncière – sistema de registro imobiliário do país. No Reino Unido, o HM Land Registry tem caminhado no sentido de permitir a realização de negócios imobiliários assinados eletronicamente com assinaturas qualificadas. Em Portugal, o governo aprovou recemente um projeto de lei que permite aos tabeliães realizar certos atos em meios eletrônicos, o que poderá abrir caminho para a implementação da assinatura eletrônica em negócios imobiliários. Pensando em termos de segurança jurídica e econômica, esses nos parecem bons exemplos.

Por outro lado, como dito alhures, podemos também aprender com erros. Nesse sentido, é imperioso reparar que as alterações empreendidas pela MP 1.085/2021 com a introdução do sistema de extratos eletrônicos ressoam o modelo do Mortgage Electronic Registration System (MERS). Trata-se do Sistema de Registro Eletrônico e Hipotecas que, de certa forma, possibilitou  (ou, ao menos, facilitou)  a explosão da bolha imobiliária nos EUA em 2008, causando uma das maiores recessões econômicas da história.

O MERS é um exemplo da disseminação de “registros fictícios”, a cargo de instituições financeiras e que, aplicado ao mercado imobiliário norte-americano, determinou a possibilidade de cessões massivas de créditos hipotecários sem que o novo credor passasse a constar no registro público. Neste sistema, é realizado o registro de documentos que têm apenas a finalidade de dar publicidade ao ato, sendo a propriedade transferida pelo contrato; em cada operação é feita uma análise dos títulos por meio de empresas de auditoria (seguradoras) que garantem (ou deveriam garantir) a operação imobiliária e operam também um registro particular dos imóveis. Esse tipo de procedimento desconectou os registros públicos dos verdadeiros titulares dos créditos garantidos por hipotecas, o que facilitou a explosão de uma prática de empréstimos predatórios (os chamados subprime loans), bem como a revenda e a securitização fraudulenta desses empréstimos.

Vale ressaltar que o sistema de registro de direitos reais nos Estados Unidos já era relativamente inseguro mesmo antes mesmo da utilização dos registros eletrônicos, o que se dá por uma série de razões. Entre elas, o fato de o regime notarial americano basear-se no registro de documentos, não de direitos, com relativização da fé pública registral. A crise das execuções hipotecárias „apenas“ revelou as fragilidades do sistema americano, além de evidenciar que a confiabilidade de determinadas relações econômicas é necessária para o funcionamento da sociedade como um todo. O objetivo geral da redução de conflitos judiciais deve-se assim distancias das execuções fundamentadas em títulos sem lastro, tal qual ocorreu nos EUA, fortalecendo relações de confiabilidade social e evitando assim novas crises econômicas sistêmicas.

O papel que caberá à Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça  (CNJ) ao regulamentar o Serp e ao dispor sobre hipóteses de uso de assinatura avançada ou qualificada em atos que envolvam bens imóveis dento do escopo da Lei 14.382/2022 enfrentará tamanho desafio. Em suma, tal tarefa consistirá em escolher qual dos caminhos o Brasil trilhará: de um lado um caminho seguro, no qual o CNJ estabelecerá os fundamentos para a construção da confiabilidade digital das relações sócio-econômico no que tange direitos reais e suas mutações no mercado imobiliário, ou, de outro lado, um caminho tortuoso, incerto e pouco confiável de fomento à monetização da especulação em detrimento a confiança das relações reais com sérias repercussões, especialmente, para o cidadão comum.