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Artigo – Habitação De Interesse Social e De Mercado Popular e o Limbo Jurídico do Comprador (Des)Avisado – Por DOUGLAS GAVAZZI

Habitação de interesse social e seu papel no mercado imobiliário

Por DOUGLAS GAVAZZI*

 

Plenamente assegurado pela Constituição Federal Brasileira, o direito à moradia é uma competência comum da União, dos estados e dos municípios. A todos estes entes, conforme aponta o texto constitucional, compete “promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”.

O direito à moradia foi positivado no artigo 6º da Carta Magna com a Emenda Constitucional n° 26/2000, que incluiu a moradia no rol dos direitos sociais dos cidadãos, representando assim um grande marco para o efetivo cumprimento por parte dos governos.

 

A moradia e o direito a ela são desafios presentes na grande maioria das grandes cidades ao redor do mundo, especialmente nas metrópoles mais populosas. Ulteriormente, as questões que rodeiam o instituto da habitação social têm ganhado destaque, impulsionado por iniciativas governamentais de regulação da atividade construtiva.

 

Especialmente em São Paulo, Capital, o Plano Diretor Estratégico prevê um papel fundamental da iniciativa privada afim de contribuir com a política de Habitação de Interesse Social (HIS) e Habitação de Mercado Popular (HMP).

 

Ao leitor, necessário, portanto, diferenciar os modelos dos programas de habitação social, a saber: a Habitação de Interesse Social (HIS) tem o escopo a implementação de medidas que visem a redução do déficit habitacional. Com isso, a HIS se desenvolve para o atendimento habitacional das famílias de baixa renda e pode ser implementada pelo setor público e pelo setor privado. As unidades habitacionais HIS são construídas e planejadas para atender o padrão mínimo de dignidade social, contando com sanitário e vaga de garagem.

 

Dentro da modalidade de Habitação de Interesse Social, existem duas outras classificações, a depender da renda dos beneficiários, quais sejam: a HIS-1, destinada a famílias com renda familiar mensal média de até 3 salários mínimos; e a HIS-2, destinada a famílias com renda familiar mensal média de até 6 salários mínimos.

 

A Habitação de Mercado Popular HMP se reserva a famílias com renda mensal entre 6 e 10 salários mínimos, e da mesma forma, pode ser promovida tanto pelo setor público quanto pelo setor privado. No caso de HMP, as unidades são mais elaboradas.

 

Afim de incentivar esse interesse do setor privado à construção de moradias sociais, as municipalidades concedem benefícios fiscais e urbanísticos, que variam de acordo com a legislação de cada ente concedente. Em São Paulo, Capital, os incentivos concedidos às construtoras permeiam a isenção do pagamento de outorga onerosa do direito de construir, além da permissão de majoração do potencial construtivo, podendo alcançar o sêxtuplo da área a ser incorporada.

Os incentivos e benefícios concedidos condicionam a construção a um custo de empreitada bastante inferior, trazendo maior rentabilidade ao incorporador, nem sempre alcançando o objetivo da norma que é a de aumentar a oferta de moradias a preços condizentes aos destinatários deste programa social.

Ocorre que a falta de fiscalização da municipalidade, levou o setor privado a alienar essas unidades a qualquer pessoa ou empresa se a devida verificação do enquadramento das famílias elegíveis à destinação das unidades imobiliárias de HIS 1, HIS 2 e HMP, desvirtuando completamente o propósito legal que é o de atingir a camada social dos compreendidos nas faixas salariais familiares já citadas neste artigo.  Muitas unidades acabaram nas mãos de investidores, alimentado o mercado sem o atendimento às regras de destinação que se prestava a construção.

No estado de São Paulo, os incentivos, além dos mencionados, acabam por ter reflexos nos custos do registro da incorporação e especificação de condomínio, os quais sofrem abastada redução prevista no item 14 e subitens da tabela de emolumentos instituída pela lei estadual 11.331/02. Também estão sujeitas às reduções as escrituras imobiliárias lavradas nos moldes dos itens 1.3 e 1.4 da tabela destinada às despesas notariais.

A municipalidade paulistana, na revisão do Plano Diretor Estratégico, em 2023, com a edição do Decreto Municipal nº 63.130 de 19 de janeiro de 2024, bem como com a publicação da Portaria da Secretaria de Habitação nº 61 de 22 de maio de 2024, intentou regular a participação da iniciativa privada na promoção da Habitação de Interesse Social – HIS, permitindo a aquisição dessas unidades habitacionais por parte de investidores e fundos, com a possibilidade de locação das mesmas à pessoas que se enquadrem nas faixas de renda informadas. Além disso, o prazo de afetação dessas unidades ao programa social é de apenas 10 (dez) anos contados da expedição do certificado de conclusão da obra.

Como anteriormente mencionado, há nítida falta de fiscalização pelo Poder Público municipal o que acarreta na destinação desvirtuada das unidades e em um imbróglio jurídico junto ao registro imobiliário. Os notários e registradores imobiliários são agentes públicos, são lotados à segurança preventiva dos negócios jurídicos e também fiscais da correta aplicação da lei.

Um dos livros obrigatórios do registro de imóveis é o LIVRO 5 (cinco) de indicador pessoal, destina-se ao repositório dos nomes de todas as pessoas que, individual ou coletivamente, ativa ou passivamente, direta ou indiretamente, figurarem nos demais livros, em cuja folha deve ser anotada a referência aos números de ordem daqueles. Permite a busca dos registros pelo nome da pessoa. Com isso, o registrador, através do sistema do SAEC – Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado, mantido pelo Operador Nacional do Registro – ONR, consegue verificar se determinado adquirente é aparente usufruidor dos benefícios estabelecidos pelo sistema de Habitação de Interesse Social e de Habitação de Mercado Popular.

Quando o título ingressa à qualificação registral, o registrador verifica os elementos intrínsecos do negócio, ficando, por independência técnica, passível da formulação de exigências para que se consiga o efetivo ingresso da propriedade no fólio real.

            Segundo Amadei, (1993 p.22/55, apud Zanetta, 2024, Proc. 1061807):    

“Considerar o aspecto instrumental do registro imobiliário, importa reconhecer, nele, (a) o poder que atribui a quem o tem (instrumento/poder) e investigar (b.i) a função que exerce na ordem jurídica da sociedade e (b.2) o fim a que se destina (instrumento/meio).

Assim, no primeiro enfoque (registro como instrumento/poder), forçoso verificar, em cada sistema jurídico, quais os efeitos decorrentes do registro imobiliário, pois é na proporção da classificação e extensão desses efeitos que a inscrição representará o grau de poder conferido ao titular do direito real.(…)

Qualificação registrária, inscrição e publicidade são decorrências diretas e específicas da atuação da instituição registral imobiliária, de sua dinâmica procedimental, ao passo que a segurança jurídica (estática e dinâmica) é a razão dessa instituição, que se obtém pelos efeitos da qualificação, da inscrição e da publicidade. (…)

Fixadas as considerações gerais da instrumentalidade do registro imobiliário, importa então, no momento, especificar no que consiste o aspecto instrumental do registro imobiliário no controle urbanístico da propriedade.

Neste ponto, preliminarmente, cumpre relembrar que o eixo do registro predial é a propriedade imobiliária. É, pois, em torno da propriedade imobiliária que gravitam todos os atos registrários praticados pelo Oficial Registrador no fólio real.

Assim, entende-se a razão pela qual a funcionalidade registrária da publicidade imobiliária era associada à “preservação dos interesses privados” e, hoje, sustenta-se que está associada, “formalmente”, à preservação de “determinados interesses da comunidade“. (grifei)

No que tange aos empreendimentos HIS e HMP, temos percebido que após o advento do Decreto Municipal de 19 de janeiro de 2024, passou-se a exigir que o título de aquisição seja acompanhado de certidão expedida por entidade supervisionada pelo BACEN, atestando o enquadramento da renda familiar do adquirente nos parâmetros estabelecidos no artigo 46 da Lei 16.050/2014, conforme preceitua o artigo 5º, §1º do Decreto Municipal 63.130/2024, certidão essa que deverá ser expedida de acordo com as disposições contidas no Anexo II da Portaria nº 61 – SEHAB de 22 de maio de 2024.

O fato é que a Portaria da Secretaria de Habitação, regra:

Art. 4º A certidão exigida nos termos do art. 5º, caput do Decreto n° 63.130 de 19 de janeiro de 2024 será emitida por entidade supervisionada pelo BACEN, sendo que, quando for expedida por correspondente bancário ou instituição que atue com crédito imobiliário, deverá ser expedida por profissional detentor da certificação CA-600 ou outra certificação que ateste conhecimento operacional necessário para atendimento a política pública, acompanhada da respectiva comprovação da certificação.

Estariam aptos à emissão da certidão de enquadramento, profissionais bancários com a certificação CA-600. Quando a aquisição do bem ocorre através de financiamento bancário, a emissão da certidão se torna justificável, vez que o processo de financiamento imobiliário revela toda a condição financeira dos proponentes adquirentes.

O problema se dá quando a aquisição é feita sem a intervenção de um agente bancário, através de escritura pública entre a construtora e o comprador.  Como emitir dita certidão de enquadramento – não se tem notícia. Veja-se que conforme relatado, muitas vezes o adquirente não se enquadra nos preceitos do programa social, entretanto, a venda foi firmada.

O imóvel permanece sob titularidade da construtora, e o adquirente, sem título de propriedade. Instala-se o litígio em que muitas vezes somente se resolverá no judiciário, com a devolução dos valores recebidos pela vendedora, acrescidos de acessórios como perdas e danos, nem sempre verificáveis se demonstrada a ciência do comprador da afetação do bem ao programa social.

Uma solução não muito clara aos adquirentes (des)avisados seria a da destinação da unidade adquirida à locação social. Obscura situação vez que o eventual adquirente permanece não sendo enquadrado no rol dos requisitos do benefício, entretanto, haveria uma lacuna legal estatuída no Decreto n° 63.130 de 19 de janeiro de 2024:

Art. 7º Os benefícios pertinentes ao regime jurídico previsto neste decreto poderão ser também utilizados por empreendimentos destinados, total ou parcialmente, para locação das unidades habitacionais de HIS 1, HIS 2 e HMP, observadas as seguintes regras:

I – as unidades destinadas para esta finalidade deverão indicar tal condição mediante averbação na matrícula, em adição à averbação prevista no art. 4º deste decreto;

II – a celebração do contrato de locação também é condicionada à apresentação da certidão que ateste o enquadramento das famílias destinatárias finais na respectiva faixa de renda estabelecida, nos termos do artigo 5º deste decreto;

III – a alienação das unidades destinadas à locação social será permitida, observando-se o regramento previsto neste decreto.

(grifei)

O regramento municipal não esclarece, ou ao menos é omisso – acintosamente, talvez, – se essas unidades HIS-1, HIS-2 ou HMP podem ser alienadas à pessoas não beneficiárias do Programa Social, desde que se habilitem a afetá-las à locação social, por 10 (dez) anos, mediante averbação concomitante ao registro da aquisição.

Como dito, a legislação se faz, mais uma vez, inerte a essas dúvidas, mas ainda assim, prostrada à ausência de fiscalização quando da alienação das unidades habitacionais.

A princípio, nos parece possível, com fundamento no que regrava a Medida Provisória 1.162/2023, que tinha como objetivo retomar o Programa Minha Casa Minha Vida, buscando facilitar o acesso à moradia para famílias de baixa renda. A MP foi convertida na Lei Federal nº 14.620/23 que em seu art. 4º prevê:

Art. 4º Os objetivos do Programa serão alcançados por meio de linhas de atendimento que considerem as necessidades habitacionais, tais como:

(…) IV – fomento à criação de mercados de locação social de imóveis em áreas urbanas; (…)

(grifei)

A legislação exige a declaração de enquadramento do locatário, entretanto, não do locador. Logo, essa afetação deve ser feita pelo registrador imobiliário, por averbação na matrícula, e tal circunstância de aquisição para destinação à locação social, constar do título aquisitivo.

O próprio Decreto Municipal prevê sanções aos (des)avisados, entretanto, ainda sem regramento:

Art. 8º A inobservância ao exposto neste decreto acarretará:

I – ao promotor do empreendimento, o dever de pagamento integral do potencial construtivo adicional utilizado, tributos, custas e demais encargos referentes à sua implantação, além de multa equivalente ao dobro deste valor financeiro apurado, devidamente corrigido, sem prejuízo das sanções previstas na Lei nº 16.642, de 9 de maio de 2017 – Código de Obras e Edificações;

II – a terceiros adquirentes a partir da segunda alienação dos imóveis de HIS 1, HIS 2 e HMP, cobrança dos valores indicados no item anterior, calculados de forma proporcional à fração ideal do imóvel adquirido, estando autorizado o Poder Público a adotar as medidas processuais análogas às previstas nos incisos I e II do artigo 107 da Lei nº 16.050, de 2014 – PDE.

 

A 1ª Vara de Registros Públicos da Capital-SP manifestou-se no Processo de Dúvida nº 1061807-58.2024.8.26.0100 que tratava de caso análogo:

Conforme se extrai dos dispositivos acima transcritos, a produção privada de unidades de HIS 1, HIS 2 e HMP utilizando benefícios urbanísticos e fiscais previstos no Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo caracteriza adesão a regime jurídico próprio, qualificado, simultaneamente, pela fruição dos benefícios fiscais e urbanísticos pertinentes e pela destinação, de forma permanente e cogente durante dez anos, das unidades habitacionais a famílias que atendam aos limites de renda nela estabelecidos.

É importante observar que a averbação na matrícula de cada unidade habitacional confere publicidade da situação jurídica que recai sobre o imóvel afetado ao regime jurídico próprio que restringe sua destinação a famílias com o perfil de renda declarado no licenciamento do empreendimento.

Assim, uma vez efetivada a averbação na matrícula, na forma do art. 47, § 1º, I, da Lei n. 16.050/14, promove-se integração entre o instrumento de provisão habitacional de interesse social para a população de baixa renda com o registro imobiliário, para ampla publicidade da situação jurídica do imóvel urbano vinculado, em prol da segurança jurídica no tráfico imobiliário.

(grifei)

Sinteticamente, no sistema registral brasileiro vigora o princípio da legalidade estrita admitindo o ingresso de título que atenda aos ditames legais. Nos parece que embora controvertida, o instituto de fomento à locação social, cumpre a legalidade de regramento faltoso, admitindo o ingresso dos títulos no fólio real. Assim como o Decreto Municipal prevê sanções ao incorporador que por alienação a não beneficiário do Programa que desafeta indiretamente a unidade habitacional, ressalva-se, também, ao Registrador Imobiliário, o direito de cobrar da instituidora condominial, a diferença emolumentar decorrente da desafetação da unidade em desrespeito aos preceitos legais do Programa Social.

Thomas Hobbes em “O Leviatã”, há muito lecionava que o mundo jamais seria capaz de satisfazer as necessidades do homem, tendo em vista o egoísmo e a competição entre si – guerra de todos contra todos –  cada homem somente procura aquilo que lhe é de interesse particular, sem olhar para o todo.

 

*DOUGLAS GAVAZZI é advogado especialista em Direito Notarial e Registral, tendo atuado por 30 anos em serventias extrajudiciais no Estado de São Paulo. Atualmente é consultor e assessor de delegatários de serviço notarial e registral. Parecerista e professor em instituições de ensino ligadas à atividade. Nas poucas horas vagas é médico veterinário.