Breves considerações sobre o Valor Venal
Alguns munícipios paulistas, liderados pela capital do estado (Decreto Municipal nº 46.228/2005), têm criado, como nova base de cálculo do ITBI (imposto que incide sobre as transmissões onerosas de bens imóveis), o chamado “valor venal de referência”, ou ainda “valor de mercado”, que substitui o antigo valor venal, ainda utilizado como base de cálculo para outro imposto, o IPTU (imposto que incide sobre a propriedade predial e territorial urbana).
Como se sabe, a maioria dos municípios paulistas conta com plantas genéricas de valores altamente defasadas, isto é, as avalições que deu ensejo à cobrança do IPTU estão abaixo dos valores reais dos imóveis posto que há muito não são atualizadas, e algumas nunca o foram. Mudar a planta genérica é caro, demanda alto investimento com o mapeamento e a análise minuciosa de cada propriedade privada. E mais, tem forte reflexo político negativo, já que aumentar a base de cálculo do IPTU leva ao aumento do valor a ser pago por todos os munícipes (leia-se eleitores), por vezes em percentuais que ultrapassam os 100%.
A saída encontrada, então, para não mexer no bolso de toda a população, mas apenas daqueles que realizarem transmissões onerosas de bens imóveis, foi criar outra base de cálculo para o ITBI, ainda que tecnicamente seja ela a mesma do IPTU, isto é, o valor de mercado do bem transacionado. Essa inovação legislativa fruto de leis municipais específicas (no caso do município de São Paulo, é apenas um decreto), acaba por criar para um mesmo bem imóvel duas avaliações distintas, uma para o IPTU e outra para o ITBI, e o pior, ambas feitas pela mesma Fazenda Pública (municipal).
Nos autos da Apelação nº 1004131-85.2013.8.26.0053, a 14ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, entendeu que a adoção de valores venais distintos para os aludidos tributos afronta o princípio da legalidade, uma vez que dispõe “o artigo 38 do Código Tributário Nacional que a base de cálculo do ITBI é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos, conforme a redação do artigo 7º, da lei nº 11.154/91”, ou seja, “o referido imposto e o IPTU têm a mesma base de cálculo” (j. 10/04/2014, v. unânime, r. Des. João Alberto Pezarini).
O entendimento em questão parte de premissa simples: a expressão “valor venal”, sempre utilizada, significa valor de venda, isto é, valor de mercado. Portanto, numa simples interpretação literal da expressão vê-se que a saída encontrada pelos munícipios para não atingir o bolso de todos os contribuintes, mas mesmo assim arrecadar mais nos negócios de transmissão onerosa de bens, beira a ilegalidade. Valor venal e valor de mercado ou de referência para negócios imobiliários são absolutamente a mesma coisa. Soa muito estranho dizer que um município ora considera que seu imóvel vale “X” e ora considera que ele vale “Y”. Ou é errada a primeira avalição ou a segunda (as vezes até as duas), e isso permite ao contribuinte o questionamento judicial de uma ou de outra.
Por outro lado, não se pode olvidar que é cediça a desatualização dos chamados valores venais do IPTU, o que sempre levou uma disfarçada sonegação no momento da escrituração da transmissão onerosa de uma propriedade imobiliária. Talvez por isso, em observância ao princípio da supremacia do interesse público, o STJ firmou o entendimento de que a forma de apuração da base de cálculo e a modalidade de lançamento do IPTU e do ITBI são diversas, razão que justifica a não vinculação dos valores desses impostos (REsp 1.202.007/SP, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 15/05/2013). No mesmo sentido: AgRg no AREsp 206.701/SP, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe 02/08/2013; AgRg no Ag 1.385.877/RS, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Turma, DJe 03/06/2013; AgRg no AREsp 261.606/SP, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 22/2/13; AgRg no REsp 1.226.872/SP, Rel.Min. Castro Meira, Segunda Turma, DJe 23/4/12; AgRg nos EDcl no Agravo em Recurso Especial nº 36.076/SP, Rel. Min. Benedito Gonçalves, Primeira Turma, j. 27/08/13).
Em suma, ainda que discutível a existência de dois valores venais fixados pela mesma Fazenda Pública, entendemos, pelos motivos acima expostos, que os Tabeliães de todo o país estão obrigados, nas escrituras em que haja transmissão onerosa de bens imóveis, a seguir como valor do bem negociado, desde que maior do que o declarado pelas partes, o chamado valor de referência ou de mercado, quando existente, devendo ele ser a base de cálculo tanto dos emolumentos quando dos impostos incidentes. Eventual discordância da parte deverá ser submetida ao Poder Judiciário, em procedimento judicial próprio, muito embora o entendimento jurisprudencial atual não seja nada animador.
Parabéns pelo artigo. Sempre uma honra ter sido (e ainda ser) seu aluno. Forte abraço.
Sábias considerações Gustavo, todavia, ainda em municípios menores, em cartórios deficitários, fica muito difícil a aplicação de tal decreto, tendo em vista a não colaboração do município no intuito de aumentar os valores venais, e principalmente a falta de boa fé do particular em passar realmente pelos valores reais.
Mas me animo em ler artigos como o seu, em saber, que como nós aqui, existem pessoas que se negam a praticar e incentivam a lavrar escrituras pelos valore reais, quando ausente esses valores de referência.
Att. Thaiz