ITCMD – Valor venal ou valor de mercado?

Debates têm surgidos acerca de qual é a correta base de cálculo para o recolhimento do ITCMD – Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos.

Para elucidar a questão, partiremos da Constituição Federal, que estabelece a competência dos Estados e do Distrito Federal para instituir o dito imposto (art. 155 – I).

Diante da previsão constitucional, no Estado de São Paulo foi editada a Lei nº 10.705 de 28 de Dezembro de 2000, instituindo o ITCMD, que por sua vez, foi regulamentada pelo Decreto Estadual nº 46.655, de 1º de abril de 2002.

A Lei nº 10.705/2000, no artigo 9º, cumulado como o parágrafo 1º do mesmo artigo, estabelece que a base de cálculo do imposto é o valor venal do bem ou direito transmitido, expresso em moeda nacional ou em UFESPs (Unidades Fiscais do Estado de São Paulo), e que “considera-se valor venal o valor de mercado do bem ou direito na data da abertura da sucessão ou da realização do ato ou contrato de doação” (§ 1º – grifei), sendo que no caso de imóvel urbano ou direito a ele relativo, o valor da base de cálculo do ITCMD não será inferior ao fixado para o lançamento do IPTU (art. 13 inciso I).

Portanto, nos termos da lei paulista, considera-se valor venal o valor de mercado do bem (art. 9º § 1º).

Quanto à base de cálculo ser inferior ao fixado para o lançamento do IPTU, a vedação foi reproduzida no art. 16, inciso I, letra “a” do Decreto Estadual nº 46.655/2002.

Nesse emaranhado de normas tributárias, foi editado ainda o Decreto nº 55.002, de 9 de novembro de 2009, que introduziu alteração no Regulamento do Imposto sobre Transmissão “Causa Mortis” e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos – RITCMD (Decreto Estadual nº 46.655/2002), de modo que o parágrafo único do artigo 16 passou a prever que poderá ser adotado como base de cálculo do imposto, em se tratando de bem imóvel urbano, “o valor venal de referência do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis – ITBI divulgado ou utilizado pelo município, vigente à data da ocorrência do fato gerador…”.

Em que pese a nova redação do Decreto, observada no parágrafo anterior, tal regramento carece de legalidade.

A base de cálculo é o valor sobre o qual o tributo é calculado, e deve necessariamente ser fixada em lei.

O Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966), no artigo 97 e seguintes, prega que “somente a lei pode estabelecer a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo…” (inciso IV), ressalvados alguns casos.

Nesse sentido, o primoroso professor de Direito Tributário, Ricardo Alexandre, ensina que “chegou-se à conclusão de estarem sujeitas à legalidade ou, de maneira mais estrita, à reserva legal: I – a instituição de tributos, ou a sua extinção; II – a majoração de tributos, ou sua redução; III – a definição do fato gerador da obrigação tributária principal e do seu sujeito passivo; IV – a fixação de alíquota do tributo e da sua base de cálculo;…”[1]

Em consonância com o alcance do princípio da legalidade na via tributária, conclui-se que qualquer alteração da base de cálculo deve ser feita por lei.

O Código Tributário Nacional ao tratar da majoração da base de cálculo, prevê que se a majoração resultar em aumento do tributo, a regra é de que o procedimento seja feito mediante lei, pois tal majoração se equipara a modificação, e somente lei pode estabelecer majoração de tributos (artigo 97, II, e § 1º).

Não é debalde esclarecer que a simples atualização monetária do valor da base de cálculo não constitui majoração do tributo, razão pela qual não esta submetida a observância do princípio da legalidade.

Da mesma forma que ocorre no ITCMD, o reajuste do valor venal dos imóveis para fim de cálculo do IPTU não dispensa a edição de lei, a não ser no caso de correção monetária[2].

Ao estabelecer que pode ser adotada como base de cálculo do ITCMD o valor de referência do ITBI, o parágrafo único, número 2, do artigo 16 do Decreto Estadual nº 46.655/2002, afronta diretamente o princípio da legalidade, uma vez que a base de cálculo só pode ser alterada por lei, e não pode ser adotada outra base que não aquela prevista na lei, como visa o decreto.

O Nobre Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, José Araldo da Costa Telles, que foi meu ilustre professor na graduação, e cuja consagrada sabedoria dispensa maiores comentários, tratando da questão, nos autos do Agravo de Instrumento – processo nº 2002425-44.2015.8.26.0000, cuja leitura é recomendada, após referência ao Decreto Estadual nº 46.655/2002, e ao Decreto Estadual nº 55.002/2009, que alterou o parágrafo único do mencionado art. 16 do RITCMD, sustenta com propriedade que “não se pode esquecer que um decreto não pode adotar base de cálculo diversa da estabelecida em lei, com alteração do valor venal, sob pena de violação do princípio da legalidade”.

O caso concreto apreciado pelo Ilustre Desembargador Araldo Telles, foi o seguinte: a Municipalidade de São João da Boa Vista adotou dois critérios para avaliar os imóveis localizados em sua circunscrição: A) valor real estimado (valor de mercado), que na hipótese equivalia a R$ 71.851,17; e B) valor venal para lançamento do IPTU, que correspondia a R$ 16.052,60. A Fazenda Estadual pretendia que fosse considerado como base de cálculo para o recolhimento do ITCMD o valor de mercado estimado pela Prefeitura (R$ 71.851,17), razão pela qual interpôs agravo de instrumento.

 Em seu julgamento, o Eminente Desembargador negou seguimento ao recurso, sustentando que deve ser considerado para o cálculo do imposto “causa mortis” o valor venal para lançamento do IPTU (R$ 16.052,60), porque a adoção do outro critério (valor de mercado) importaria em majoração da base de cálculo do tributo mediante decreto, revelando-se, portanto, ilegal.

Em que pese toda a excelente explanação do ilustre Relator, expressa na decisão, tenho, sob humildade, que tal posição não parece ser a melhor, uma vez que, como já visto, a própria Lei nº 10.705/2000 esclarece que “considera-se valor venal o valor de mercado do bem ou direito na data da abertura da sucessão ou da realização do ato ou contrato de doação”.

Assim, data maxima venis, parece não haver discrepância alguma em que o valor para fins do cálculo do ITCMD seja o valor de mercado atribuído pela Municipalidade, pois no sentido é a veemente previsão da própria Lei nº 10.705/2000.

Diante do caso concreto, e defendendo justamente a ideia de que a base de cálculo não pode ser alterada por um decreto, tenho que deve prevalecer como base de cálculo para o recolhimento do ITCMD o valor de mercado estimado pela Prefeitura de São João da Boa Vista (R$ 71.851,17), por assim dispor a lei.

De maneira geral, o valor de referência (valor de mercado) é o que deve prevalecer, quando existente no Município critério para avaliar os imóveis localizados conforme o valor de mercado.

Na oportunidade trago recentíssima decisão do Nobre Desembargador da 9ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Mauro Conti Machado, no Agravo de Instrumento – processo 2022961-76.2015.8.26.0000, que em seu voto, ao tratar da Lei nº 10.705/2000 e sua regulamentação pelo Decreto Estadual nº 55.002/2009, concluiu que “…conjugando as normas em questão, não se vê irregularidade na aplicação do valor venal apontado pela Fazenda Estadual como base de calculo do ITCMD, que, no caso, se refere ao valor de mercado imputado ao imóvel pela Prefeitura Municipal no exercício tributário da data do óbito”.

Assim, se determinado Município possui critério para avaliar os imóveis localizados em sua circunscrição conforme o valor de mercado, que não corresponda necessariamente ao valor venal do imóvel, a interpretação que se tem da letra da lei, respeitados entendimentos contrários, é de que o valor de mercado deve prevalecer como base de cálculo para o ITCMD, pois a adoção de base de cálculo diversa da prevista em lei reveste-se de ilegalidade.

 


[1]  Alexandre, Ricardo. Direito tributário esquematizado / Ricardo Alexandre. – 8. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014. p. 97

 

[2] Nesse sentido: aumento na base de cálculo do IPTU deve ser por lei, decide STF. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=244641. Acesso aos: 10 de março de 2015.

 

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