Artigo – Poderes específicos nas procurações e a desnecessidade de descrever os bens, quando se tratar de todos os bens do outorgante – Por Arthur Del Guércio Neto e João Francisco Massoneto Junior
O Código Civil de 2002 trouxe, em seu artigo 661, a seguinte disposição:
Art. 661. O mandato em termos gerais só confere poderes de administração.
§ 1o Para alienar, hipotecar, transigir, ou praticar outros quaisquer atos que exorbitem da administração ordinária, depende a procuração de poderes especiais e expressos.
§ 2o O poder de transigir não importa o de firmar compromisso.
Tal disposição foi mantida exatamente como estava no artigo 1.295, do Código Civil de 1916, nada foi alterado. As procurações em que o outorgante confere amplos poderes, citando que o procurador pode vender “todos e quaisquer imóveis que sejam de sua propriedade”, sempre foram aceitas sem problema nenhum, facilitando a vida daqueles que necessitam usar esse meio de representação, e, principalmente, respeitando o direito das pessoas de outorgar poderes da forma que desejarem e necessitarem. Vejamos precedente:
“ACÓRDÃO CSM-TJSP 524-6/3
COMPROMISSO DE VENDA E COMPRA. DESCRIÇÃO – PRECARIEDADE. ESPECIALIDADE OBJETIVA. PROCURAÇÃO – ALIENAÇÃO – PODERES EXPRESSOS. SERVIDÃO PREDIAL.
Daí decorre o entendimento de Carvalho Santos, citado por Arnaldo Marmitt:
Da necessidade dos poderes expressos e especiais para poder o mandatário alienar bens de propriedade do mandante resulta, também, a necessidade de constarem na procuração os bens a serem vendidos, devidamente individualizados, a não ser que os poderes abranjam todos os bens do mandante (Mandato, Aide Editora, 1ª edição, 1992, p. 182.3)”.
Com o passar do tempo, o que houve de diferente, na verdade, foi o surgimento de distintas interpretações, tanto na doutrina, como na jurisprudência, no sentido da palavra “especiais”, empregada ao final do parágrafo primeiro, do artigo 661, que, como já citado acima, seguiu a mesma redação do Código Civil anterior.
Parece-nos que não há divergência em relação ao entendimento de que, quando a lei determina que os poderes devam ser especiais e expressos, no caso de alienar, hipotecar, transigir, ou praticar outros quaisquer atos que exorbitem da administração, a intenção do legislador foi realmente separar tais poderes dos gerais de administração, exigindo que se faça uma procuração específica para tais fins, ou seja, que na procuração conste expressa e especificamente a outorga desses poderes (vender, permutar etc). Desse modo, se o procurador for representar o outorgante em uma venda de imóvel, não poderá utilizar uma procuração com poderes gerais de administração, será necessário que o outorgante conceda uma procuração expressa e específica para vender imóveis, ou bens móveis, por exemplo.
Quanto ao significado de poderes “expressos”, notamos que não há confusão, nem divergência, todos entendem que deva conter expressamente o tipo de poder que está sendo outorgado, ou seja, se o procurador está recebendo poderes só para vender, ou, só para permutar, hipotecar, ou, ainda, para todos juntos, desde que constem expressamente todos os poderes conferidos. Em síntese, para tais fins, o mandato deve conter exatamente quais desses poderes ele está outorgando.
O problema é quanto às interpretações em relação aos poderes “especiais”, que, segundo recente decisão do STJ (REsp: 1836584 MG 2019/0266544-2), significa que devem, obrigatoriamente, em todos os casos, serem descritos/identificados na procuração, todos os imóveis que poderão ser alienados, não podendo o outorgante, dessa maneira, dar poderes para alienar, por exemplo, quaisquer imóveis que sejam, ou venham a ser, de sua titularidade.
Respeitosamente, discordamos dessa interpretação, por entendermos que não é o que está escrito na lei, conforme podemos notar na redação do parágrafo 1º, do artigo 661, disponibilizada no início deste singelo artigo. O que nos parece, é que a lei quis separar tais poderes dos comuns de administração, mas, em momento algum, obriga o outorgante a descrever todos os imóveis, um a um, limitando até, dessa maneira, a outorga de poderes amplos, como o de venda de imóveis que ainda irão ser adquiridos em nome do outorgante. Situação essa, muito comum às inúmeras pessoas físicas e jurídicas, que comercializam imóveis, veículos, ações etc.
Com todo o respeito, a exigência de poderes “especiais” não significa que deva o outorgante, obrigatoriamente, descrever todos bens, mas, sim, que ele deva deixar claro qual bem, ou, quais bens, ele está autorizando o procurador vender, permutar etc. Essa especialização é necessária, para que não existam dúvidas sobre quais bens fazem parte daquele ato, no entanto, ao deixar claro que são todos os bens de titularidade do outorgante, por óbvio, não há necessidade de descrever um por um, afinal, a especialidade, neste caso, já está atendida, pois “todos”, são “todos”, não restando margens para dúvidas. Podem ser todos os bens atuais, assim como os que serão posteriormente adquiridos em nome do outorgante, não há impedimento nenhum, e a especialidade continuará sendo atendida.
Exemplificando melhor o nosso ponto de vista, nada impede que uma pessoa física ou jurídica, que compra e vende automóveis, outorgue uma procuração com poderes de venda, abrangendo todos e quaisquer veículos que estejam, ou venham estar, em sua titularidade. Do mesmo modo, não há como impedir que esses poderes sejam atribuídos para venda de todos os imóveis que estejam, ou venham estar, na titularidade do outorgante, desde que esteja bem claro o desejo do outorgante na procuração. Podemos também imaginar uma situação em que a pessoa queira dar poderes para vender todos os imóveis urbanos de sua titularidade, localizados nos Estados de São Paulo e Rio Grande do Sul, ou todos os imóveis rurais de sua titularidade, localizados no Mato Grosso do Sul. Perfeitamente possível, e legal, não há motivos para recusa em lavrar a procuração, ou em aceitá-la no momento da escritura pública.
Devemos lembrar que as pessoas são livres para outorgar poderes amplos a quem desejarem, não há impedimento legal para tanto, o que é preciso, a nosso ver, é que a redação seja clara, não deixando dúvidas sobre a vontade do outorgante. Ao dizer que os poderes são para vender todos e quaisquer imóveis que sejam de propriedade dele outorgante, ou mesmo aqueles que futuramente venham a ser de propriedade dele outorgante, ele já está cumprindo a especialidade, uma vez que ele disse exatamente quais são os que podem ser vendidos pelo procurador, ou seja, todos.
Proibir que uma pessoa outorgue poderes de venda amplos, abrangendo todo e qualquer bem que esteja em nome do outorgante, é, a nosso ver, ferir gravemente o direito e a liberdade da pessoa em outorgar os poderes que quiser e precisar, muitas vezes gerando grandes prejuízos financeiros ao requerente, e, de quebra, podendo gerar prejuízos ao mercado imobiliário, automobilístico, de ações etc.
As Normas dos Serviços Extrajudiciais da Corregedoria Geral de São Paulo trazem em seu Capítulo XVI, Seção V, Subseção VIII, item 131.1, a seguinte redação: “Entende-se por poderes especiais na procuração para os fins do art. 661, §1º, do Código Civil, a expressão “todos e quaisquer bens imóveis” ou expressão similar, sendo desnecessária a especificação do bem”. Tal dispositivo se manteve, mesmo após a decisão contrária, acima citada.
Entendemos a redação das Normas de São Paulo como a mais acertada, pois, ao Tabelião, cabe a importante função de orientar o outorgante sobre a importância e as consequências que possam ocorrer, quando da outorga de poderes muito amplos, e, ainda, constar no ato uma redação bem clara sobre qual a real intenção do outorgante. Por outro lado, recusar-se a lavrar o ato com poderes amplos, seria criar algo que não está na lei, retirando um direito daquele que está requerendo. Da mesma forma, entendemos que também não seria correto a recusa, por parte do Tabelião, em que é apresentada a procuração, para ato de alienação, que contenha esses poderes de vender “todos e quaisquer bens imóveis” do outorgante.
Essa situação em que se outorgam poderes para alienar todos os bens que sejam de titularidade do outorgante, pelo preço e condições que o procurador desejar, é muito utilizada em determinados ramos de negócios, como de empresas, ou mesmo pessoas físicas, que trabalham com a compra e venda de imóveis. Também existem os casos daquelas pessoas que, por um motivo ou outro, se ausentam do país, ou mesmo de seu Estado ou Município, por determinado tempo, necessitando constituir procurador para representar-lhe amplamente, durante esse período. Isso facilita a vida das pessoas, e agiliza as transações e os negócios imobiliários, assim como as transações de veículos, ações etc, que passam a não depender de uma única pessoa, para toda e qualquer transação.
Se o outorgante, maior e capaz, estando em perfeitas condições psíquicas, resolve confiar esses poderes a determinada pessoa, por sua conta e risco, por qual motivo a lei poderia intervir, impondo certos limites na outorga desses poderes? Como as empresas, ou pessoas físicas, que compram e vendem imóveis diariamente, poderão supor quais imóveis serão adquiridos e posteriormente vendidos, para que possam descrevê-los na procuração? Tais exigências farão que os outorgantes, sejam pessoas físicas ou jurídicas, precisem realizar procurações constantemente, o que, além de onerá-los, dificultará as suas vidas, enquanto o que procuram, ao realizarem uma procuração pública, é justamente a praticidade, aliada à segurança jurídica advinda dos serviços notariais.
Entendemos que essa exigência de descrever os imóveis objetos da procuração, mesmo que esteja expressamente contida a menção de “todos e quaisquer imóveis do outorgante”, é uma limitação que só traz consequências ruins ao mercado imobiliário, e, mais grave ainda, a limitação de um direito do indivíduo, de outorgar poderes da forma que quiser, a quem desejar, como já mencionamos antes. O que precisa é constar de forma clara na procuração, se o procurador tem poderes de venda, e se esses poderes são só para determinados imóveis, aí sim precisamos mencionar quais, ou, se para todos, pois, tanto em uma situação, como na outra, os poderes já estão devidamente especializados.
A única exceção, a nosso ver, seria em casos de procuração com a finalidade de doação, a qual, por várias peculiaridades, deve descrever quais bens farão parte do ato de liberalidade, nos moldes de julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ):
DIREITO CIVIL. REQUISITOS DO INSTRUMENTO PROCURATÓRIO PARA A VALIDADE DA DOAÇÃO. É inválida a doação realizada por meio de procurador se o instrumento procuratório concedido pelo proprietário do bem não mencionar o donatário, sendo insuficiente a declaração de poderes gerais na procuração.
Assim, diante da solenidade que a doação impõe, em razão da disposição de patrimônio que acarreta, somente o mandatário munido de poderes especiais para o ato é que pode representar o titular do bem a ser doado. Assinale-se que a doutrina e a jurisprudência brasileiras têm admitido a doação por procuração, desde que o doador cuide de especificar o objeto da doação e o beneficiário do ato (donatário). O STJ já exarou o entendimento de que o animus donandi materializa-se pela indicação expressa do bem e do beneficiário da liberalidade, razão por que é insuficiente a cláusula que confere poderes genéricos para a doação (REsp 503.675-SP, Terceira Turma, DJ 27/6/2005). REsp 1.575.048-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 23/2/2016, DJe 26/2/2016”.
Assim entendemos, respeitando as opiniões contrárias.
Arthur Del Guércio Neto – Tabelião de Notas e Protestos em Itaquaquecetuba. Especialista em Direito Notarial e Registral. Especialista em Formação de Professores para a Educação Superior Jurídica. Escritor e Autor de Livros. Palestrante e Professor em diversas instituições, tratando de temas voltados ao Direito Notarial e Registral. Coordenador do Blog do DG (www.blogdodg.com.br)
João Francisco Massoneto Junior – Especializando em Direito Notarial e Registral pela USP – Ribeirão Preto (2019). Especialista em Direito Notarial e Registral, com formação para o magistério superior pela Universidade Anhanguera – Uniderp (2012). Especialista em Direito Ambiental pela Universidade Norte do Paraná – UNOPAR (2010). Bacharel em Direito pela Universidade Paulista de Ribeirão Preto-SP (2005). Preposto Substituto do Tabelião de Notas e Protesto de Monte Azul Paulista-SP, onde iniciou suas atividades em 1999.